A arquitetura, como qualquer linguagem, é um ente vivo que se transforma e coloca novas propostas e reflexões. Incorporar valores associados ao conforto na vida cotidiana e não presentes na arquitetura dos séculos passados é um desafio que os arquitetos enfrentam quando têm que intervir em sítios, conjuntos ou edifícios históricos. É fundamental preservá-los, como é fundamental impedir que a preservação sufoque a vida, o novo.

Dentro dessa premissa, situa-se a intervenção do Paço Alfândega (inserido no projeto Monumenta BID), uma das peças fundamentais no novo momento que o Pólo Alfândega terá que desempenhar, juntamente com o Pólo Bom Jesus e o Pólo Pilar, na requalificação da Ilha do Recife, berço onde nasceu a cidade.

O edifício, notável pela sua escala no bairro e pelo seu histórico, estava relegado a um simples estacionamento de veículos, desfigurando-se cada vez mais pela adequação ao uso e pela inclemência do tempo. Construído em 1720 para abrigar o convento dos padres oratorianos, separado da Igreja da Madre de Deus por um claustro, abrigou, a partir de 1826, a Alfândega de Pernambuco. Sua reforma, concluída em 1841, incluiu a abertura da Rua da Alfândega, separando definitivamente o edifício da igreja. Em 1922, sofreu um incêndio. Dez anos depois, tornou-se posse da Santa Casa de Misericórdia e passou a ser alugado para terceiros, como a Cooperativa dos Usineiros, que transformou o imóvel em armazém de açúcar.

 Transformado, agora, em um shopping singular — com ênfase na gastronomia, na cultura e no comércio especializado —, o Paço Alfândega será âncora da requalificação desse trecho da Ilha do Recife denominado Pólo Alfândega. Busca-se, assim, uma sustentabilidade econômica por meio de um novo uso, resgatando o interesse pelo sítio.

Garimpar a construção existente, desnudando paredes e pisos. Identificar, baseado nos relatos iconográficos, o que é a essência do projeto original. Mapear seus diversos momentos de modificações e usos correspondentes em confronto com a implantação e operacionalização de um uso com características específicas e modernas. Estes foram o desafio do projeto.

A proposta arquitetônica foi deixar clara a leitura do que é novo, por meio da utilização de estrutura metálica independente das alvenarias existentes, equalizando a ordem arquitetônica do velho edifício com os diversos níveis que constituem o Paço Alfândega. Os espaços abertos, mall e galeria, além de responder ao layout do novo uso, repetem pontualmente os pátios da antiga construção. As paredes foram submetidas a uma verdadeira cirurgia que viabilizou o mix do shopping, ao mesmo tempo que ressaltou seus valores intrínsecos. A criação do novo espaço arquitetônico foi marcada pelo diálogo harmonioso entre o novo e o velho, mantendo a caligrafia e a escala desse prédio soberano.

A singela cobertura plana sobre a última laje é o coroamento da edificação. Ela equilibra o desnível entre as extremidades norte e sul, com características neoclássicas, reminiscências figurativas das torres destruídas no incêndio. A cúpula aberta nessa coberta empresta ao mall uma profundidade vertical ao espaço com luz irradiante e valorizadora do entorno e visagem do céu tropical.

O sucesso da intervenção vem provar que quando feito com critérios e atenção repartida entre as necessidades do presente e as singularidades do passado, a intervenção comercial em edifícios históricos, mesmo quando mais antigos, como é o caso do Paço Alfândega, trazem benefícios evidentes para a sociedade, tanto em termos econômicos (criação de um novo espaço comercial) quanto urbanísticos (animação de espaço urbano antes decadente) e históricos (revitalização e requalificação de um monumento importante do passado para uso no presente). Um reforço da identidade cultural da cidade e da população pelo resgate de uma parte de sua história transformada em locus de atividade econômica produtiva.